O Caminho de Santiago Aragonés é a continuação, em Espanha, do Caminho de Arles, um dos quatro caminhos provenientes da França, e o único caminho com passagem pela fronteira de Somport. No entanto, os demais seguem pela região de Navarra e encontram-se em Puente la Reina, de onde seguem como Caminho Francês.
Considerando os altos picos dos Pirinéus da região, o frio é uma característica imponente, sobretudo no inverno. Portanto, percorre-lo nessa altura pode ser um desafio, ou deleite, acrescidos à peregrinação. Quanto ao trajeto do Caminho Aragonês são 165 km, dividido em 6 etapas.
“Ainda há vida em seus sonhos…
Inquietos em meio às suas buscas o homem torna-se, acima de tudo, um peregrino e, alguns, encontram nos percursos a Santiago, o caminho. Já que ele carrega em si a natureza da introspecção. Pois, enquanto o corpo percorre o terreno, a mente mergulha nos porões da memória e traz à tona sonhos esquecidos. Considerando este aspecto, podemos dizer, que o inverno age como aliado, potencializado em regiões como a de Aragão repleta de altimetria e solitude. E exige que o peregrino reúna, antes de mais, uma dose especial de prudência, persistência, consciência e parcimónia, sobretudo na primeira etapa onde o frio é intenso e parte do caminho, coberto por neve, pode impelir a um desvio pela estrada de alcatrão. Da mesma forma, a redução de albergues abertos nessa altura, também exige atenção e planejamento.
No entanto, o que é impeditivo para uns, é motivação para outros e era esse o caminho que nos chamava. Então, encaramos o frio e a neve como um manto luminoso e macio.
“enterre seus medos…
Caminho de Santiago Aragonés | Etapa 1
A 1.630 metros acima do nível do mar, os termómetros marcavam -15º na noite anterior e únicos peregrinos do Albergue Aisa, assim iniciamos nossa caminhada, cercados por animados esquiadores, na fronteira de Somport.
A neve encobria a Cruz de Santiago no alto da colina, por isso mal se podía vê-la e representava um anúncio do encontraríamos a seguir. A cordilheira dos Pirinéus Aragonêses é generosos em belíssimas paisagens mas, cobertas de neve, exige equipamento adequado e atenção a pouca visibilidade da sinalização.
Enquanto os esquiadores movimentavam-se eufóricos com a generosidade de neve pelos picos, o caminho seguia-se em silencio e atenção em meio ao vislumbre da imensidão branca. Já que caminhar sobre a neve exige maior esforço e não permite imprimir grande velocidade à progressão, algo a se ter em conta também em relação ao planeamento de hospedagem neste trecho. Pois, há um direcionamento das atenções aos grupos e esquiadores, o que torna onerosa e escassa a possibilidade de hospedagem . E tudo contribuiu para que concluíssemos nossa primeira etapa em Castiello de Jaca, 8,6 km antes da cidade de Jaca.
“continue a viagem…
Caminho de Santiago Aragonés |Etapa 2
Castiello de Jaca – Arrés| 34 km
No entanto, em Castillo de Jaca – onde a altitude cai para 800 metros – a neve despedir-se e dá lugar ao gelo estaladiço, a trilha sonora compoe-se pelo burburinho da água e o cantar dos pássaros até a cidade de Jaca, onde o canto gregoriano acolhe como um bálsamo que aquece a alma, antes de seguir o caminho até Arrés.
É importante saber que iniciar a etapa em Castiello de Jaca, sobretudo em períodos de inverno, torna a variante por San Juan de La Peña desaconselhável já que a etapa passa a ser extremamente longa para os dias curtos de inverno e não há possibilidade de hospedagens até Arres, nesse período., considerado baixa temporada, mesmo no mosteiro.
“percorra os escombros e destape o céu…
Caminho de Santiago Aragonés |Etapa 3
Arrés – Ruesta| 28,4 km
Enquanto caminhamos e nos afastando dos picos, acompanhamos o derreter do gelo que alimenta a terra e faz nascer a vida na paisagem. Adentramos um denso bosque e então, surge as ruínas do que um dia fora uma aldeia.
Abandonada desde 1959, Ruesta preserva suas ruínas sem habitantes, exceto os hospitaleiros do único espaço habitado, o albergue. No entanto, quando lá estivemos eles também não estavam presentes e fomos solitários hóspedes de uma aldeia abandonada.
Enquanto isso, alheia aos escombros, a natureza invade e torna a dar vida ao lugar, em forma de árvore que desde o nascimento segue a luz por entre frechas que um dia fora porta, outra sustenta algumas paredes e uma trepadeira envolve os pilares, do que um dia fora um lar. Conduzindo nossos pensamentos às gentes que por ali sorria, se apaixonava, tinha filhos e sonhava com um futuro, que certamente não seria de memórias em escombros. Entäo, concluimos que, apesar de nós humanos e das nossas histórias, é a natureza que sustenta os nossos pilares, e ela sempre se refaz.
“ Não desista, embora o frio queime…
Caminho de Santiago Aragonés |Etapa 4
Ruesta – Sanguesa| 22 km
O caminho que deu lugar as cores, segue agora com muitas retas, numa etapa onde os pensamentos não abrem mão da companhia e os escombros recentes de Ruesta e conduz a visita aos porões da memória, enquanto no céu, bandos de aves seguem alheias ao burburinho das lembranças, num bailar de simplicidade e beleza.
Mas, mesmo longe do gelo, o frio invernal persiste e exige que todas as precauções manténhan-se. Como a respeito da hospedagem pois o o albergue em Sanguesa não abre nesse período e só há um albergue particular no povoado.
“Mesmo que o sol esteja escondido, e se cale o vento ainda há fogo em sua alma
Caminho de Santiago Aragonés |Etapa 5
Sanguesa – Monreal| 27 km
Contudo, o caminho não poderia ser o próprio paraíso, caso contrário, perderia o sentido e naturalmente há dias de chuva. Então água mistura-se a terra e transforma o barro em uma pasta grudenta que dificulta o caminhar, vivemos momentos que nos fechamos mais em nós e a larga paisagem restringe-se a poucos metros, não conseguimos enxergar muito mais que os nossos passos. Tão pouco, conseguimos ouviu o outro pois estamos dedicamos a não escorregar, fechados em nossas capas.
Nesse trágico cenário, unen-se rajadas de vento e nossa reação é apertamos as capas e nos fechamos ainda mais, mirando o horizonte de olhos serrados num ambiente perfeito para instalar-se medos e dúvidas.
É isso, nem sempre sempre o caminho é fácil, no entanto, é preciso perceber o frescor e a nova vida que traz a chuva, e seguir em frente, escolher entre olhar para a lama ou, vibrar pelos verdes campos que surgem após a chuva, desfrutarmos do cheiro de terra molhada, pode fazer toda a diferença.
“Abra as portas, remova os parafusos…
Caminho de Santiago Aragonés |Etapa 6
Monreal – Puente La Reina| 30 km
Então, passada uma etapa chuvosa, eis que amanhece um belo dia de sol e a lama, que ainda persiste, já não incomoda tanto. Afinal, já estamos fechados em capas e apreciamos a paisagem e em nosso entorno, diferente tons de verde compõem o cenário, a luz penetra por entre as folhas do bosque e quando a vida se preenche de cor e luz, ouvimos mais o coração, e ele vibra. Passamos a ouvir o outro, e não apenas a nós mesmos.
Em conclusão, ficara para trás muita neve, o gelo se desfez e a água que parecia amolecer o caminho, limpara as folha e vimos melhor as cores do mundo e o esplendor da vida renascida.
E assim, chegamos a última etapa do caminho aragones, em Puente la Reina, uma aldeia carregada de simbolismo. Porque, além de ser o ponto de encontro de muitos caminhos, suas muitas portas nos lembram das muitas decisões e escolhas que nos deparamos ao longo do caminho e da vida. Mais uma vez, fica evidente que não importa o ponto de partida, não importa se o caminho vem por Roncesvalles ou Aragão, “quando em Puente La Reina as rotas se encontram, o peregrino já haverá feito uma passagem natural, o aparecimento de novos valores e a chegada de uma nova consciência”.
A “ponte da rainha” é então uma representação simbólica desse caminho entre dois mundos – o material e o espiritual – refletidos nas águas da matéria do rio Arga, nesta busca da verticalidade, dessa necessidade de pormos-nos de pé a cada amanhecer e caminharmos equilibrados, e centrados, numa ligação com algo maior.
Puente la Reina, simbolicamente, evidência o reflexo na matéria da essência de nossos passos, sem importar qual tenha sido o seu ponto de partida.
“ensaie uma canção…
Os caminhos são, abertos e sem fronteiras de uma forma que deixa-nos livres e estranhamente no sentimo-nos protegidos em meio ao nada. Não acostumados com tamanha liberdade, é natural que nos fechemos em nós. Assim, conforme caminhamos percorremos o nosso interior, visitando nossos porões. De forma que, passo-a-passo limpamos o pó das recordações, jogamos fora algumas tralhas e olhamos para outras sem saber porquê guardamo-as. Enquanto isso, outras que nem ao menos conseguimos mover ou mesmo olhar, aguardam pacientemente o progresso do nosso caminhar.
É assim, quando remexemos os nossos guardados, aguçamos os nossos sentidos e os primeiros a serem afetados são a visão e audição. Em outras palavras, passarmos a enxergar e ouvir além de nós mesmos. Para, depois, voltarmos ao início e refazermos todos os passos, sob um novo olhar e uma nova percepção.
Um processo que nunca acaba, pois o fim de um caminho é o início de outro, e sempre haverá um caminho a ser percorrido, num morrer e renascer constante.
Assim sendo, buen camino pois ainda há muito o que percorrer, não importa qual seja o seu ponto de partida, ensaie uma canção e não esqueça que sempre há vida nos sonhos.